Anúncio

Cuiaba - MT / 16 de junho de 2025 - 21:36

Terras em Paraty herdadas por filhas de comerciante vão a leilão e pescadores temem sair

A informação de que 32 lotes de terra em Paraty, no Rio de Janeiro, foram colocados à venda em leilão chegou em maio aos moradores de ilhas e enseadas afastadas da cidade.No Saco da Sardinha, a cerca de 40 km do centro histórico de Paraty, o mensageiro foi Thiers Euler Ribeiro, 31, mestre de embarcação. Ele ouviu sobre a venda dos lotes em conversas na cidade, confirmou na internet a veracidade da história e navegou de lancha até as vilas caiçaras, para avisar aos moradores.

Envolvidos com o caso calculam que mais de 2.000 pessoas podem ser impactadas pelo leilão de parte de Paraty.

José Domingos, 86, vive no Saco da Sardinha desde que nasceu. As cerca de 20 moradias da área costeira são da mesma família, da qual José é o membro mais velho. “Estamos há quase 200 anos aqui”, diz.

Todos vivem da pesca no mar abundante de robalo, xerelete, carapau e lula, e da roça onde plantam batata, aipim e fruta-pão. Nenhum deles possui documentos formais sobre a propriedade.

Não há energia elétrica e a locomoção é exclusivamente feita pelo mar, como em outras comunidades tradicionais da região.

No dia 26 de maio, cerca de 54 mil metros quadrados no Saco da Sardinha foram vendidos em um leilão virtual, com preço inicial de R$ 15.591,47 e lance final de R$ 63.000,00.

O RGI (Registro Geral de Imóveis) não detalha o perímetro do lote à venda. As certidões desta e das demais propriedades têm descrições imprecisas, como “dois alqueires de terras mais ou menos, dividindo pela frente com o mar”, ou “dividindo-se pelo lado com Felippe de Tal”.

A falta de informação se o pedaço de terra vendido é aquele em que vivem tem tirado o sono das famílias.

“Não conseguimos aceitar que o pessoal de fora possa vender essa terra ou construir casa aqui. A não ser que quem construa sejam os filhos e netos da gente”, diz Meire de Souza, 38, mãe de quatro filhos.

Thiers, o responsável por espalhar a notícia, tem a posse de um pedaço de terra em Bijiquara, enseada também envolvida no leilão.

“Assim que soube da venda fiz o orçamento do georreferenciamento [sistema que define a posição de um terreno]. Custa R$ 33 mil. O pessoal daqui vive da pesca e da agricultura familiar, como vai conseguir dinheiro para fazer o georreferenciamento, contratar advogados e se defender?”

O leilão também atinge famílias de maior poder aquisitivo que possuem propriedades em Paraty. Procurados, os advogados não quiseram se pronunciar.

Dos 32 leilões realizados em maio, 29 lotes foram vendidos, dois foram encerrados e um foi suspenso.

Os lotes de terra na costa e na serra de Paraty, eram, até o leilão, propriedades de José Maria Rollas, comerciante português radicado no Rio de Janeiro. José e os irmãos, Francisco e Elísio, eram donos da Casa Rollas, loja famosa no início do século 20 por alugar ternos de segunda mão e toda a sorte de objetos usados.

“A loja vendia dentaduras, material cirúrgico, até talheres, tudo de segunda mão”, afirma o historiador Flavio Santos.

Santos diz que até a década de 1940, jornais cariocas mensuravam a importância da visita de uma autoridade estrangeira na então capital federal pela quantidade de ternos e fraques alugados na Casa Rollas.

A Casa Rollas entrou em crise a partir da década de 1970. José Maria adquiriu as terras em Paraty através de leilão, registrou-as em 1972 e morreu em 1988, deixando seis herdeiras.

“Após seu falecimento, as áreas puderam ser transferidas, vendidas ou partilhadas diretamente aos herdeiros. As herdeiras de José Maria, como são muito idosas, definiram em consenso pela venda das terras”, afirma Nizzo de Moura, advogado de de membros da família Rollas.

Nizzo defende que a falta de detalhes sobre a localização dos lotes, com uso de termos como “uma sorte de terras”, era comum em certidões de propriedades rurais da época.

A reportagem foi a um endereço ligado a uma das herdeiras de José Maria Rollas, mas não a encontrou.

Na Ilha do Araújo, uma das áreas mais populosas entre as envolvidas no leilão, moradores se mobilizaram para impedir a viagem de topógrafos. Eles foram enviados por um arrematante do leilão para começar medições no terreno, mas não saíram do cais.

“Eles chegaram no cais para embarcar à ilha, a população achou estranho e perguntou o que eles estavam indo fazer. Eles disseram que iam medir a área de um arrematante, mas ainda não foi emitida a posse desse leilão. Eles não tinham mandado para entrar na terra e não entraram”, diz Pablo Costa, morador da ilha.

No último dia 15, moradores fizeram protesto pelas ruas do centro histórico.

A Ilha do Araújo tem mais de 500 moradores e, diferentemente do Saco da Sardinha, parte possui documentos de propriedade, incluindo RGI. Contudo, não há como saber quais são as moradias que se sobrepõem aos lotes leiloados, já que estes não têm localização detalhada.

A reportagem não conseguiu identificar os arrematantes. Também tentou contato com a Prefeitura de Paraty por telefonema e email, mas não foi atendida.

No último dia 5, o prefeito de Paraty, Zezé Porto (Republicanos), publicou vídeo em que pediu “calma” aos moradores.

“Provavelmente quem ganhou esse leilão, quem conseguiu ter essas postas de terra, está achando que são terras vazias”, afirmou Porto.

“Tenham calma, não precisa ter essa grande preocupação. Essas questões surpreendem, mas podem ter certeza que o Poder Legislativo Municipal e o Poder Executivo estarão junto com vocês”, disse o prefeito, sem detalhar como o município pretende agir.

Para Nizzo, o longo tempo sem definição desde a morte de José Maria, em 1988, até o leilão, 37 anos depois, se deve à ordem de prioridade dada ao espólio —o empresário também possuía imóveis no Rio e lotes em municípios como Macaé.

A comissão de moradores da Ilha do Araújo buscou assessoria jurídica e pretende provocar a Promotoria do Rio de Janeiro.

Thiers disse que tenta encontrar um advogado para defender os moradores em caso de futuro processo, ou provocar uma ação civil pública no Ministério Público.

“Se tivermos que sair daqui para onde vamos com filhos, netos e bisnetos? As minhas crianças ficam doentes quando passam mais de três dias em Paraty. Não estão acostumadas e nunca vão se acostumar”, diz Meire.

noticia por : UOL

Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Anúncio

Cuiaba - MT / 16 de junho de 2025 - 21:36

LEIA MAIS

Anúncio