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Cuiaba - MT / 27 de maio de 2025 - 14:10

Oruam: sucessão de escândalos escancara a cultura do crime no Brasil

O traficante Daniel Falcão dos Santos, conhecido como “Gotinha”, foi morto na semana passada durante o cerco do Bope ao líder da facção Terceiro Comando Puro (TCP), TH da Maré — um dos criminosos mais procurados do Rio de Janeiro, também eliminado na operação. 

Além de braço direito de TH, Gotinha era um influenciador digital com mais de 100 mil seguidores e colecionava amigos famosos, principalmente nas cenas musicais do rap e do funk. Entre eles Oruam, um dos artistas mais populares no Brasil na atualidade, que lhe prestou uma homenagem e protestou contra a polícia na internet.

“O Estado tá matando nós (sic) em um ciclo infinito”, escreveu o rapper na legenda de uma foto em que posa ao lado do bandido. “Quando o Estado mata um menor novo da forma que fez, ele diz que não quer consertar a bagunça, só fazer um banho de sangue.” 

Por falar em “banho de sangue”, dois dias antes da morte de Gotinha, Oruam foi a atração principal de um festival em Olinda (PE) que terminou em brigas, tumulto e um duplo homicídio. Sobre essa tragédia, no entanto, o artista não se manifestou em suas redes sociais. 

Mas o post sobre Gotinha está longe de ser o maior tributo já prestado pelo artista a um criminoso. Filho do traficante Marcinho VP, preso desde 1996 e um dos líderes do Comando Vermelho, ele ganhou projeção fora do meio musical justamente após pedir a liberdade do pai durante um show no festival Lollapalooza, em São Paulo, no ano passado. 

O rapper de 24 anos também exibe no corpo tatuagens com retratos de Marcinho e de seu fiel escudeiro: Elias Maluco (1966-2020), notório por comandar a execução brutal do jornalista Tim Lopes, em 2002 — e que ele afirma ser seu “tio de consideração”. 

“A lei quem faz é nós” 

Não bastasse esse tipo de reverência a assassinos, Oruam costuma lançar músicas que exaltam a vida do crime e a figura do criminoso, com direito a menções a facções, armamentos usados por traficantes e todo tipo de droga. 

Uma das letras mais destacadas por seus críticos é a de “Assault (Carro Forte)”, gravada com os rappers Chefin, Bielzin, Borges e Orochi: “Todos os meus manos portando fuzil / Todos os meus manos portando uma [pistola] Glok / Meta dos cria [gíria para se referir ao jovem nascido e criado numa favela] é parar o Brasil / E explodir a p* do carro forte”. 

Na mesma linha, “Faixa de Gaza” (com MC Orelha) traz os versos “Não somos fora da lei / Porque a lei quem faz é nós / Nós é o certo pelo certo / Não aceita covardia / Não é qualquer um que chega e ganha moral de cria”. 

Mesmo quando não aborda delitos violentos, Oruam resvala, de alguma forma, em ilegalidades ou condutas morais duvidosas. Como na faixa responsável por levá-lo ao topo do ranking do Spotify no último verão, “Oh Garota Eu Quero Você Só Pra Mim” — cuja letra cita uma jovem que fez um implante nos glúteos após ganhar dinheiro no Jogo do Tigrinho e é chamada para praticar sexo grupal com a “tropa” do rapper. 

O hit é uma parceria de Oruam com o cantor Zé Felipe, marido da influencer Virginia Fonseca, recentemente convocada pela CPI das Bets para explicar seus contratos de publicidade com casas de apostas online.

Crônica ou apologia? 

Para uma parte da intelectualidade brasileira, as letras de Oruam não passam de meras “crônicas da vida nas periferias”. Ou seja: são apenas narrativas que dão voz aos jovens pobres e funcionam como uma forma de expressão cultural. 

No entanto, a linha entre a representação da realidade e a glorificação de comportamentos ilícitos pode ser tênue. E, sob a alegação de evitar a banalização da violência e da criminalidade, políticos de diversas cidades vêm propondo a criação de dispositivos conhecidos como “leis Anti-Oruam”. 

O objetivo desses projetos é proibir o poder público de utilizar recursos para contratar, apoiar ou divulgar shows, especialmente infantojuvenis, cujo conteúdo faça apologia ao crime ou ao uso de drogas. No momento, mais de 80 câmaras municipais em todo o Brasil já estão debatendo iniciativas do gênero, e três capitais acabaram de aprovar leis nesse sentido: Campo Grande (MS), Maceió (AL) e Vitória (ES). 

O projeto original partiu da vereadora Amanda Vettorazzo (União), de São Paulo, onde a proposta vem avançando e pode ser votada no plenário da Câmara em breve. Ela afirma que usou o nome do rapper por considerá-lo “um dos maiores símbolos da apologia ao crime”. 

Ainda segundo Amanda, ligada ao Movimento Brasil Livre (MBL), as músicas de Oruam “abriram as porteiras para que rappers e funkeiros começassem a produzir músicas endeusando criminosos e líderes de facções”. 

Em sua conta no X, o filho de Marcinho VP respondeu à parlamentar: “Sempre tentaram criminalizar o funk e o rap. Coincidentemente, o universo fez um filho de traficante fazer sucesso, eles encontraram a oportunidade perfeita para isso. Virei pauta política. Mas o que vocês não entendem é que a lei anti-Oruam não ataca só o Oruam, mas todos os artistas da cena”. 

O discurso do rapper, contudo, não se limitou à defesa de sua música ou de gêneros musicais. Em outro post, ele prometeu: “Até se proibir, nós vamos cantar. Nós somos o ódio”. 

Também ameaçou Amanda Vettorazzo (“É só não falar meu nome, senão vai conhecer o capeta”) e incentivou seus seguidores a atacarem o perfil da vereadora — que acabou registrando um boletim de ocorrência por difamação, injúria e incitação ao crime, além de solicitar reforço em sua segurança.

Em entrevista ao jornalista Roberto Cabrini, Oruam diz não gostar da mídia: “Ficam falando que sou filho de traficante"Em entrevista ao jornalista Roberto Cabrini, Oruam diz não gostar da mídia: “Ficam falando que sou filho de traficante” (Foto: Divulgação/Record)

Parceria com o filho de Marcola 

A máxima de que “não existe publicidade ruim”, tão aplicada aos dias atuais, parece ser a base de todo o marketing de Oruam — nascido Mauro Davi dos Santos Nepomuceno (a alcunha artística é o seu primeiro nome invertido). Desde a controvérsia no Lollapalooza, quando furou a bolha jovem, o rapper não para de gerar notícias e memes. 

Como o episódio da cusparada no rosto de um fã que o provocou durante um show. Ou o seu encontro religioso com influente pastor Marcos Pereira, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias. 

Também houve o anúncio de uma parceria musical, ainda não concretizada, com o cantor Lucas Camacho, filho de Marcola, líder do PCC. E uma entrevista “confessional” para o jornalista Roberto Cabrini, da Record TV, a primeira do rapper em rede nacional. 

Gravada na mansão onde Oruam mora, num condomínio de luxo no Rio, a reportagem viralizou e virou motivo de piada graças um trecho em que o artista diz não gostar da mídia porque “ficam falando que sou filho de traficante”. O humor está no comentário imediato e seco de Cabrini: “Mas não é uma mentira”. 

A (má) fama do rapper chegou até Portugal, onde ele faz shows para uma multidão de fãs — mas também costuma se meter em confusões. Em março de 2024, o filho de Marcinho VP foi escoltado para fora de um shopping por seguranças que flagraram integrantes de sua equipe usando drogas no local.

Três meses depois, em outra turnê pelo país, Oruam e sua trupe chegaram a uma boate fazendo muito barulho e atrapalhando o trabalho dos funcionários. Em seguida, ele impediu que policiais realizassem uma revista em seu carro, e acabou detido por desacatado à autoridade.

O incidente chegou até o parlamento português, onde o deputado André Ventura (líder do partido de direita Chega), durante um discurso contra a imigração, classificou-o como um “imigrante bandido” e citou seu parentesco com o líder do Comando Vermelho. 

Duas prisões na mesma semana 

Nos últimos meses, porém, Oruam tem trocado, cada vez mais, os desvios morais pelos criminais. Em fevereiro, ele foi preso duas vezes em menos de uma semana: a primeira depois de dar cavalos de pau com seu carro na frente de uma viatura da polícia e a segunda, por dirigir com a Carteira Nacional de Habilitação vencida. 

Liberado após pagar fianças no valor de cerca de R$ 60 mil cada, ele lançou um álbum, intitulado “Liberdade” dias depois — o que lhe rendeu acusações de premeditar os dois delitos, com o intuito de promover o novo trabalho.

Na semana seguinte, veio outra detenção, mas dessa vez inesperada. Em 26 de fevereiro, a Polícia Civil do Rio de Janeiro realizou uma operação em sua mansão para investigar um vídeo em que o artista aparece disparando uma arma de fogo para o alto.

Segundo Oruam, tratava-se da gravação de um clipe, e as balas usadas eram de borracha. Porém, sem querer, os policiais acabaram encontrando no local um amigo de infância do rapper que estava foragido da Justiça, procurado por envolvimento numa organização criminosa. 

O artista foi levado para uma delegacia, alegou não saber da situação do “parça” e acabou liberado depois de assinar um termo circunstanciado por “crime de menor potencial ofensivo”. 

O filho de Marcinho VP ainda terá de responder pelo crime de favorecimento pessoal (quando se ajuda alguém que é alvo da Justiça). E há quem diga que o cerco está se fechando contra ele. 

Legado sanguinário 

Na entrevista para Roberto Cabrini — concedida em março, após as prisões —, Oruam sinalizou com a possibilidade de se emendar, melhorar seu comportamento. “Tenho que ser mais homem e levar a vida a sério”, disse. 

O que não deve mudar, no entanto, é sua admiração por Elias Maluco e a defesa da liberdade para Marcinho VP (que, segundo ele, já pagou por seus crimes e só continua preso por causa de uma omissão da Justiça).

Essa insistência contrasta com a postura de outros filhos de criminosos notórios que repudiaram a trajetória de seus pais. Sebastián Marroquín, herdeiro de Pablo Escobar, não só se recusa a usar o sobrenome da família como costuma dar declarações públicas criticando filmes e séries que glamourizam a figura do narcotraficante colombiano. 

Há também o caso da americana Lucy Studey, que denunciou o próprio pai, Donald Dean Studey, um serial killer responsável pelo assassinato de dezenas de mulheres. Hoje ela faz questão de se expor e enfrentar os próprios traumas para conscientizar o público sobre os riscos de se idolatrar esse tipo de maníaco (algo assustadoramente comum na cultura pop dos EUA). 

Outro exemplo é o do filho de um dos principais membros da máfia italiana ‘Ndrangheta, considerada uma das organizações do gênero mais antigas e perigosas do mundo. Colocado em segurança pela Justiça, ele testemunhou contra o pai no tribunal e hoje vive com outro nome em um lugar desconhecido.

Sua história é contada por Luigi Ciotti, um padre italiano que dedicou sua vida a combater o crime organizado e ajudar suas vítimas. Ciotti, que gerenciou a situação, prefere não revelar a identidade do rapaz, a quem chama apenas de bravo ragazzo (“bom garoto”).

Oruam, ao contrário, faz questão de cultuar o legado sanguinário de Marcinho VP e exaltar sua influência, inclusive de dentro da cadeia. Como ele mesmo diz em uma de suas músicas mais conhecidas, “Não tenho medo, eu sou o filho do dono”.

noticia por : Gazeta do Povo

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