No enormíssimo compêndio botânico chamado dicionário existem três tipos de palavras. As palavras capim, que dão o tempo todo, em qualquer lugar, tipo: “oi” “azul”, “pedra”. As trevo de quatro folhas, que brotam de vez em nunca: “hodierno”, “tarlatana”, “nefelibata”. E existem, por fim, as palavras frutíferas, que aparecem sazonalmente: “pleito”, “carpado” e uma das minhas preferidas, que pode passar décadas sem dar o ar de sua graça, mas sempre retorna: “camerlengo“.
Deparei-me com “camerlengo” pela primeira vez em 2013, depois que o Ratzinger pediu as contas. Lendo os jornais, fui informado de que saído o papa demissionário, assumia um “camerlengo”. As matérias explicavam que este termo feiíssimo designa o interino responsável por segurar as pontas na ausência do Santo Padre e organizar o conclave, com suas reuniões intermináveis, fumacinhas coloridas e a Ilze Scamparini, até que assuma o novo líder da Igreja Católica. (brincadeira, Ilze Scamparini não é escalada pelo “camerlengo”. Há quem diga, inclusive, que é o contrário, é ela quem o escala e escolhe, sozinha, de sua laje, o novo papa –mas são só boatos).
Voltando a “camerlengo”, convenhamos: o termo não está à altura da função. Sugere outros significados, nenhum deles abonador. “Ailton, é um casamento! Você vai com essa calça amarfanhada, essa blusa rasgada, todo ‘camerlengo’?!”. Ou: “Claro que ele não deu conta da tarefa! É um preguiçoso, um encostado, um perfeito ‘camerlengo’!”. Ou ainda: “Depois de meses à deriva os marujos foram resgatados em péssimo estado de saúde, muitos com escorbuto, beribéri e alguns padecendo das pústulas e escaras só encontradas nos casos mais graves de ‘camerlengo’.”
Dou um google na palavra e descubro ser fruto da união de uma raiz latina, “camera”, no sentido de câmara, sala, com algum sufixo germânico que, aportuguesado, veio a dar em “engo” –relativo a. Se “camerlengo” soa como um monstrengo, não é pela “câmara”, é pelo “engo”. Em português, palavras terminadas assim geralmente têm conotações pejorativas. Além do supracitado “monstrengo”: “capengo”, “molengo”, “mulherengo”.
Sim, é verdade, os torcedores rubro-negros podem argumentar que tem o Flamengo, o dengo, o realengo e… E… Bem, os flamenguistas que me desculpem, mas não consigo encontrar mais uma única palavra positiva terminada em “engo” além do famigerado (ou, deveria dizer famigerengo?) “camerlengo”: como já disse, relativo à câmara. Câmara essa em que fica o dinheiro. Ou seja, o suplente do papa é uma espécie de ministro da Fazenda da Santa Sé. (Quaisquer equívocos etimológicos ou eclesiásticos, por favor, cartas à Wikipedia, ao Chat GPT e aos dicionários Priberam e Infopedia).
Outra palavra sazonal bem mais comum, mas não menos interessante, é “pleito”. Não sei se é só eu, mas não consigo pensar em “pleito” sem que meu cérebro entre imediatamente no modo quinta série. Fico imaginando coisas como, numa eleição disputada, “é um pleito duríssimo!”, numa eleição com grande abstenção, “foi um pleito caído” e, em caso de fraude eleitoral: “meteram a mão no pleito!”.
Vejo que me empolguei. Perdão. Não quero, neste momento em que, em torno do santo pleito, reúnem-se os maiores pontífices da Terra, ser acusado de faltar com o pundonor. (“Pundonor” que, assim como “pleito”, dá o que pensar. Ok, beleza, agora parei mesmo. Piadinhas com sexo e funções corporais são coisa de que qualquer zé mané é capaz, qualquer mequetrefe, enfim, qualquer camerlengo).
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noticia por : UOL