Um jagunço da cidade de Sertânia delira no sertão ao buscar vingança. Sua consciência mistura a realidade, símbolos religiosos e manifestações sociais. O montador Renato Vallone ajuda o último projeto do cineasta Geraldo Sarno a encontrar o ritmo e a ordem necessária para articular um grito de resistência.
Em outro filme, estátuas e pinturas tomam a Universidade de Belas Artes, em Lisboa. Elas convidam a cearense Greice a vislumbrar outros tempos. Isso até a jovem destruir uma das peças por acidente e voltar para casa sem que os pais saibam. Junto ao trabalho de Leonardo Mouramateus, a montagem de Karen Akerman permite que as imagens do diretor misturem passado e presente e aprofundem a personagem.
Responsáveis por organizar, selecionar e estabelecer significados entre os materiais que chegam às ilhas de edição, esses profissionais definem a estrutura e a duração do que chega à televisão e ao cinema. Eles escolhem as melhores tomadas para determinadas cenas, encontram o melhor ritmo ao juntar os arquivos que chegarão à versão final, e ainda ajudam a repensar narrativas e o tom com que elas são planejadas.
“As principais medidas já debatidas para o audiovisual priorizam a automatização da produção e esmagam, com cronogramas e orçamentos mal elaborados e amputados para a pós-produção [etapa posterior a das filmagens], o espaço de criação desse grupo”, diz Vallone. Ele diz que ainda são poucas as políticas culturais que reconhecem o papel da montagem.
Essa busca por maior visibilidade não é nova. Montadora de títulos como “Tia Virgínia” e capítulos da série “Cidade de Deus: A Luta Não Para“, a carreira de Akerman começou na chamada Retomada do cinema brasileiro, que teve início na metade dos anos 1990. Apesar do sucesso comercial de filmes como “Carlota Joaquina” e “Central do Brasil“, ela descreve uma época de pouca criatividade.
Quase uma década depois, a revitalização do Ministério da Cultura e de medidas de incentivo como a Lei Rouanet trouxeram outro panorama. Surgiam novas instituições de ensino e a montagem passava a ser vista além da função técnica.
Já num período que começava a se despedir das moviolas, com a película, Akerman também testemunhou a transformação de máquinas adaptadas à leitura de diversos HDs e fitas magnéticas, centralizadas em produtoras. Hoje, computadores potentes facilitam o trabalho, possível até em casa, com programas como o Final Cut e o Adobe Premiere.
“Vejo hoje que a montagem une meu desejo inicial de ser pianista, por trabalhar o ritmo e pensar a estrutura do filme como partitura, e minha vontade frustrada de atuar, por permitir estender ou cortar atuações e olhares que irão compor as personagens”, afirma Akerman.
A montadora destaca o surgimento do primeiro grupo de montadores da América Latina, do qual faz parte. Criada em 2012, a Associação de Profissionais de Edição Audiovisual, a Edt., tem hoje cerca de 250 integrantes de todo o país e discute questões que vão dos direitos trabalhistas a cursos sobre a profissão.
Também membro da associação, o montador Victor Costa Lopes, colaborador de diretores como Pedro Diógenes e Guto Parente, coloca a omissão em catálogos de algumas mostras de cinema como pauta comum ao Edt.
“Nós também discutimos muito sobre a relação entre a montagem e o roteiro. Dependendo da obra, principalmente em documentários [em que o trabalho com pessoas e eventos reais limita o planejamento prévio do roteiro], o papel do montador reestrutura o filme como um todo. Nem por isso ele é sempre reconhecido como autor”, afirma Lopes.
“Nosso papel nos permite partir de um material bruto, tão concreto, e pensar em tudo em que ele pode se transformar”. Por ter se formado numa época em que os softwares ainda eram novos nas universidades, ele aprendeu muito com a exploração dessas ferramentas.
“No Brasil, as transformações tecnológicas são marcadas por desigualdades. Grandes produtoras centralizam recursos e impõem adaptações compulsórias, livres de qualquer regulação. As oligarquias estrangeiras e os monopólios nacionais precarizam essa classe trabalhadora”, diz Vallone, que cresceu na periferia do Rio de Janeiro e começou sua trajetória a partir de um software hackeado.
Vencedor do prêmio ABC, em 2025, por “A Queda do Céu”, ele vê o cerne da montagem na disponibilidade física e emocional para interpretar criações de outras pessoas.
Ele cita outros grupos de mobilização, como o Movimento Arte Viva e a União Democrática dos Artistas Digitais, criados para discutir efeitos da IA sobre a produção artística brasileira, e organizações como a Coalizão Direitos na Rede, que em fevereiro emitiu nova declaração sobre o futuro da PL da Inteligência Artificial.
O projeto de lei seguiu para a Câmara, onde só será discutido dentro de meses, após ter sido aprovado pelo Senado em dezembro. Entre tópicos da regulação de sistemas generativos, inclui a remuneração dos direitos autorais de materiais desenvolvidos por terceiros, usados para treinar essas ferramentas sem os devidos créditos.
O cruzamento entre informações armazenadas virtualmente permite que plataformas como o ChatGPT construam representações visuais próprias. A partir de comandos prévios, tentam copiar a subjetividade dos montadores ao articular relações entre imagens pré-existentes.
Responsável por montar seus filmes, Paula Gaitán, 70, diz que ferramentas do tipo já lhe ajudaram a restaurar áudios de seu próximo longa. “A IA pode aperfeiçoar erros humanos. Tudo depende de como a aplicamos. Tenho a usado de forma muito concreta, apenas para questões técnicas. Acredito que a imaginação humana está muito à frente dessas ferramentas”, afirma ela.
Diretora de filmes como “Luz nos Trópicos” e “Diários de Sintra“, seus projetos fogem às narrativas tradicionais e exploram, entre outros elementos, a memória humana.
A ferramenta pode também ser utilizada para aplicações mais práticas, como a sincronia entre imagens e sons e a transcrição de diálogos entre atores.
Apesar da rapidez do universo televisivo —com demandas que costumam ser menos maleáveis que as produções para o cinema—, Elaine Stopatto diz que a IA não está presente na sua rotina de trabalho. Hoje, ela monta capítulos de “Vale Tudo“, que vai ao ar todos os dias, desde a estreia em março. “A edição da dramaturgia ainda precisa da sensibilidade do montador.”
Diretor e montador que já trabalhou com cineastas como Marcelo Caetano e Adirley Queirós, Frederico Benevides coloca big techs como a OpenAI —responsáveis por grandes gastos ambientais ao desenvolver projetos— e nomes como Elon Musk entre os atuais intermediários da produção de imagens.
“Quando filmamos e montamos um material, estamos manipulando um pedaço de mundo. Somos parte do mundo que estamos montando e nossas vivências ditam as imagens que nos parecem mais ou menos reais”, diz Benevides.
Ele questiona os interesses por trás das imagens feitas hoje e cita marcas como a Netflix, que documenta estudos com a automatização de IAs. “Produções como as dos grandes streamings utilizam a IA há muito tempo. Já existe um algoritmo por trás desses serviços que procura dizer o que as pessoas devem ou não assistir”, afirma Benevides.
“Não é porque uma máquina automatizou esse processo que a natureza dos que buscam aumentar seus lucros mudou. Que imagens são essas que eles querem trazer ao mundo?”
noticia por : UOL