“Tive a impressão de que não era noite nem dia, mas um hiato sombrio que tinha repentinamente se enfiado entre os dois e agora nunca mais iria chegar ao fim”. É assim, com trecho extraído de “A Redoma de Vidro”, livro de Sylvia Plath, que começa “Inventário de Imagens Perdidas”.
O senso de desorientação e crise íntima e existencial, instado pelo punho da escritora, indica também algo sobre alguns longas de Gustavo Galvão, como “Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa” (2013) e “Ainda Temos a Imensidão da Noite” (2019).
Mas a interpretação é outra neste novo filme. O tal hiato sombrio é violência instaurada, num processo em andamento num estado de exceção. É o Brasil num futuro quase presente, como diz o filme, e violentado por um golpe fundamentalista empreitado pela ultradireita.
Gustavo Galvão começou a filmar “Inventário de Imagens Perdidas” numa fazenda no interior do Rio Grande do Sul em 2021, durante a pandemia. O roteiro foi sendo urdido pelo diretor junto com equipe e elenco. Isso deu ao filme uma tintura de processo que vem acompanhando, pelos fatos, noticiários e realidade, o que vem ocorrendo ao país mais acentuadamente desde 2019.
O filme começa com uma imagem borrada e incerta de um prédio ardendo em chamas —uma imagem de arquivo, entre várias ao longo do filme, e esta aqui sendo a do incêndio do galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, em 2021.
Em seguida, em tom sépia, uma paisagem campesina que sugere o avanço das forças no extracampo e um clima apocalíptico via sons de aviões, tiros e ventanias junto a jargões do conservadorismo em alto-falantes falando sobre a proibição do aborto, os heróis de 1964 sonharem agora com essa nova data, o país a partir de agora não ser mais laico etc. Enquanto isso, a vida mais natural, a dos animais e vegetais, permanece intacta e indiferente à estupidez dos humanos.
Aparece Maria (Maria Galant), em fuga dos golpistas, rumando à casa de campo onde seu professor de cinema, Roberto (Roberto Oliveira), se aquartelou há tempos. Ela o encontra morto, e o tempo passado se expande junto ao instante atual, além a palheta de cores aparecer no filme. Ela espera Larissa (Larissa Laura), outra guerrilheira que, mais ao final, em dupla com a amiga, vai compor uma imagem-símbolo de resistência digna de cinema moderno europeu dos anos 1960.
Maria conversará com um Roberto ainda vivo, num flashback vago, pois as imagens de outrora e de fontes várias, de álbuns de família a eventos históricos, presentificam-se como projeções que irradiam pela sala, paredes e corpos. Disso, Roberto seria mesmo uma projeção do passado. E Maria, viva e presente ali, de qualquer modo acaba também se tornando uma imagem, já que tangida pelas projeções.
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Começa uma conversa sobre a imagem cinematográfica. Roberto queria filmar a rotina dos moradores que estão na casa dele em Porto Alegre —seria talvez filmar a vida, o real. Ele acrescenta outra ideia, a de analisar o que existe por trás de uma imagem por trás do aparente. E conclui sobre fazer um filme sobre a ficção e a realidade por trás de uma única foto.
Maria diz sobre a imagem como mercadoria que, após milhares de “likes”, se torna cânone. E segue dizendo que a revolução das imagens não passa mais pelo cinema, elas agora não mais seriam livres, mas sim uma forma de controle da mente, sentimento e criação, pois toda forma de controle passa pela imagem.
É aqui que o filme se destaca como um vigoroso ensaio sobre a imagem como instância mais crucial e urgente. A imagem é a matéria-prima do discurso, e o poder no êxito da narrativa, na sua forma e estética.
Ficção científica distópica entremeada de ensaio sobre a materialidade do tempo histórico e do instante imediato, “Inventário de Imagens Perdidas” é, entre os filmes atentos sobre o sensível estado de coisas da política nacional, algo bastante singular pela fatura diversa e instável de imagens, textos, referências e discursos que traz em cena.
noticia por : UOL