Apesar de o clima gerado pela indicação de Fernanda Torres e do filme “Ainda Estou Aqui” ao Globo de Ouro ter se assemelhado ao de uma Copa do Mundo, o desfecho do campeonato cinéfilo foi outro, bem melhor do que as últimas edições do futebolístico. A brasileira saiu da premiação com o troféu de melhor atriz em filme de drama, um feito inédito.
A derrota do longa de Walter Salles na categoria de filme em língua estrangeira, para o francês “Emilia Pérez”, até ameaçou estragar a noite de “Ainda Estou Aqui”, embora o próprio diretor soubesse que suas chances eram baixas, como disse a este jornal. Torres surgiu, então, para vingar um dos filmes mais celebrados desta temporada de prêmios.
Não só. Sua vitória será lembrada pelo país como uma espécie de reparação histórica, 26 anos depois de sua mãe, Fernanda Montenegro, ter deixado o Globo de Ouro sem o prêmio da mesma categoria –naquele ano, houve uma inversão, já que “Central do Brasil”, também de Salles, saiu com o troféu de filme em língua estrangeira.
Torres conseguiu vencer o Globo de Ouro, mas faturar o Oscar será uma tarefa um pouco mais delicada. Isso porque as chances no prêmio deste domingo eram significativamente maiores. Para começar, seus votantes são jornalistas estrangeiros, mais propensos a privilegiar trabalhos fora do eixo Estados Unidos-Reino Unido.
Também há o fato de a quantidade de atrizes indicadas ao Globo de Ouro ser mais que o dobro do que aquelas que vão ao Oscar. No primeiro caso, há 12 nomes divididos entre as alas de drama e comédia. No segundo, apenas cinco para qualquer trabalho de uma protagonista feminina.
Assim, Torres não teve que disputar a atenção com atuações elogiadas como as de Demi Moore, em “A Substância“, Cynthia Erivo, em “Wicked“, e Mikey Madison, em “Anora“, que entraram nesta segunda seção. No Oscar, o cenário muda, e as três passam a ser suas rivais.
Para além da qualidade dos trabalhos apresentados pelas mulheres no último ano, como bem lembrou Torres em seu discurso, falamos de uma concorrência formada por atrizes respeitadíssimas, seja pelo trabalho à frente ou atrás das câmeras. Não é exagero dizer que Nicole Kidman, Angelina Jolie, Tilda Swinton e Kate Winslet, indicadas com ela, representam a nata de Hollywood.
Mesmo assim, a brasileira conseguiu encontrar um lugar para si neste Olimpo. Posta numa mesa das mais distantes do palco, Torres desfilou imponente e elegante por todo o salão rumo ao seu prêmio, sendo aplaudida com entusiasmo por estes e outros nomes estelares.
Um momento para entrar para a história da cultura brasileira, e mostrar que o cinema nacional, apesar de tantos reveses nos últimos anos, está mais vivo do que nunca.
Diante deste cenário, a vitória no Globo de Ouro é importantíssima. Serve como uma plataforma que dinheiro de estúdio nenhum pode comprar. Com o prêmio em mãos, Torres ganha munição não só para projetar o seu trabalho, mas “Ainda Estou Aqui” em si, que agora tem um caminho mais certo para abocanhar uma das cinco vagas ao Oscar de melhor filme internacional —os indicados serão anunciados no dia 17.
Além de ter bagunçado a corrida de melhor atriz desta temporada de prêmios, o Globo de Ouro também a mergulhou em outras incertezas. Pulverizados, os prêmios de cinema não ajudaram a clarear o caminho até o Oscar, com os principais troféus sendo distribuídos para vários dos principais candidatos.
“O Brutalista” ficou com melhor filme de drama, direção e ator, para Adrien Brody. “Emilia Pérez”, por sua vez, com filme de comédia ou musical, filme em língua estrangeira, canção original e atriz coadjuvante, para Zoe Saldaña.
Os dois surgem como polos opostos da briga que se arma agora, mas não se pode esquecer de “Conclave”, que faturou roteiro, e “A Substância”, que ficou com atriz de comédia, para Demi Moore, hoje principal ameaça a Torres.
Se houve algo que o Globo de Ouro deixou claro, porém, foi que o vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “Anora”, precisará comer muito arroz e feijão para chegar potente ao Oscar, em março, já que ficou sem vitórias. “Wicked”, outro que ensaiava roubar os holofotes, ficou com a consolação de um troféu de melhor blockbuster.
Em TV, “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão” liderou com quatro troféus, como esperado. “Bebê Rena” ficou com dois prêmios, inclusive melhor minissérie, também seguindo as principais apostas e reforçando a ideia já passada pelo Emmy de que é nas comédias televisivas que as brigas interessantes desta safra estão.
Neste gênero, competiam séries e atuações fortíssimas, ofuscadas, em outras temporadas, pela falsa comédia “O Urso”. Foi bom que a produção levou apenas ator, para Jeremy Allen White, abrindo caminho para que “Hacks” saísse na frente, com as láureas de melhor série do gênero e atriz, para Jean Smart.
E não foram só os brasileiros que encerraram a noite rindo. No geral, esta cerimônia do Globo de Ouro teve uma boa coleção de piadas, graças ao surpreendente achado que foi sua anfitriã, a comediante Nikki Glaser. Alguns problemas técnicos e momentos de constrangimento ocorreram, mas nada que comprometesse a festa.
Quanto à reputação do prêmio, continua sendo tragicamente cômico observar a repentina normalidade dos figurões de Hollywood em relação ao Globo de Ouro, cancelado por uma série de acusações de compra de votos e racismo.
O passado foi esquecido, a edição do ano passado sinalizou e a deste, confirmou, apesar de a associação, agora reformulada, ter encontrado caminhos para continuar mimando seus votantes. São festas, lembrancinhas e conversas exclusivas com artistas que indiscutivelmente reposicionam a corrida dos melhores do ano conforme o poderio financeiro de cada filme ou série.
Nenhuma menção às denúncias do passado foi feita durante a festa, que seguiu com estrelas levemente alcoolizadas e dispostas a esquecer as mágoas.
“Uma das premiações mais prestigiosas dos Estados Unidos”, dizia o teleprompter de Catherine O’Hara, antes de a atriz apresentar uma das categorias. “Não há premiação melhor em Hollywood do que o Globo de Ouro”, disse Rogen em seguida, de forma exageradamente entusiasmada —para reforçar a mensagem ou, quem sabe, como um lembrete necessário.
noticia por : UOL