Os evangelistas da inteligência artificial (IA) —ideólogos que espalham as teses políticas e utopias tecnológicas vislumbradas no Vale do Silício— começam a chegar ao Brasil nas figuras de fundadores de startups, associações empresariais e think tanks.
Duas das ideologias inspiradas pelo avanço tecnológico são o aceleracionismo e o altruísmo efetivo.
Na primeira há a crença de que o avanço tecnológico resolverá todos os problemas que a humanidade tem e herdou.
Na segunda, o altruísmo efetivo propõe calcular benefícios e prejuízos de cada decisão (o que seria possível com tecnologia) antes de levá-la adiante.
Ambas as ideologias funcionam sob a premissa de ganhos econômicos exponenciais por meio da inteligência artificial e da busca pela singularidade (o momento hipotético em que as pessoas se fundiriam com a inteligência artificial para superar limites biológicos, como a morte).
Esse conceito faz parte de outra uma pregada pelos evangelistas, chamada de transhumanismo.
Esses são alguns dos princípios da escola de executivos fundada pelo pioneiro da inteligência artificial Ray Kurzweil, a Singularity University, que chegou ao Brasil em 2019 e ganhou mais projeção neste ano.
Também inspiram comunidades de entusiastas da inteligência artificial como a AI Brasil e grupos de pressão como a Abria (Associação Brasileira de Inteligência Artificial).
Todas essas entidades foram ouvidas, ao longo do ano passado, por parlamentares, grandes empresários e associações setoriais, como o Sest/Senat (dos transportes) e a Anoreg (dos cartorários), durante os debates sobre a regulamentação da inteligência artificial.
Esses grupos organizados são alvos de críticas de teóricos da mídia e da internet, pelo risco de disseminarem o dataísmo. O termo cunhado pela socióloga holandesa José Van Dijk faz referência a uma crença religiosa nos dados digitais e em quem os detêm —em geral, os grandes conglomerados de tecnologia. Segundo os críticos, a ideologia pode levar à desconsideração de transgressões éticas e legais, além de enfraquecer os ritos democráticos.
A Folha assistiu duas palestras do professor da Singularity Eduardo Ibrahim em São Paulo —as exposições costumam durar pouco mais de uma hora e custam até R$ 50 mil. Nelas, o palestrante dizia que a inteligência artificial já se comunica melhor do que as pessoas, citava a possibilidade de criar um CEO artificial com os conhecimentos de Elon Musk e de Jeff Bezos (o fundador da Amazon) e afirmava ser inevitável um futuro no qual os robôs tomarão as decisões políticas e econômicas mais importantes.
Ibrahim diz que o momento em que a tecnologia superará o ser humano em capacidade de raciocínio está próximo. O modelo mais recente da OpenAI, lembra ele, já se sai melhor em provas do que os doutores americanos. Por isso, será uma transição natural legar decisões sensíveis da economia e da política às máquinas.
A tecnologia, defende ele, seria capaz de superar os paradigmas atuais da política pública. O economista de formação diz que as decisões econômicas são tomadas por agentes políticos desprovidos de conhecimento técnico. “Vai ficar claro para a sociedade e para o político que delegar a escolha para a inteligência artificial será a melhor escolha.”
As últimas eleições, porém, parecem mostrar que essa realidade está distante: candidaturas que tinham o uso da inteligência artificial como mote estiveram entre as menos votadas em seus respectivos pleitos. Questionado sobre isso, Ibrahim argumenta que a situação deve mudar quando os robôs passarem, gradualmente, a ocupar espaços colegiados, como o Congresso ou o conselho consultivo, no caso de empresas.
“Em vez de substituir todo o conselho ou substituir o CEO por uma IA, é possível adicionar uma IA como membro do conselho, com um voto informado”, diz. “Com o tempo, as pessoas talvez percebam que o voto da IA é muito importante”, acrescenta.
Uma das ocasiões em que a reportagem assistiu a uma apresentação de Ibrahim foi o lançamento do VCAI, o primeiro fundo de investimento de risco voltado a empresas de inteligência artificial. A iniciativa une o dinheiro da gestora de ativos Reag, com a direção de Leonardo Santos, o fundador da Semantix —o primeiro unicórnio brasileiro de inteligência artificial.
Santos também é outro autodenominado “evangelista da inteligência artificial”. Desde que retornou ao Brasil, depois de retirar em abril de 2024 a sua empresa da Nasdaq (a Bolsa nova-iorquina conhecida por manter ações de tecnologia), ele se dedica à comunidade Brasil AI e ao grupo de pressão Abria, dos quais é fundador.
Hoje, a AI Brasil reúne 7.615 pessoas em grupos de WhatsApp, para debater os lançamentos mais recentes de IA, discutir os riscos jurídicos e fazer negócios. Por exemplo, em 10 de dezembro, quando o Senado aprovou em primeira votação o projeto de lei de regulação de IA, membros do grupo reclamaram no WhatsApp que o texto gerava insegurança para o setor. Um deles criticou o texto por não definir o que é um modelo nem o que é algoritmo. O risco é ficar para trás na corrida pela inteligência artificial.
A entidade também promove eventos presenciais todos os meses. Nos eventos, o grupo anda uniformizado e entoa gritos de guerra, como o próprio nome da entidade ou “bora acelerar”, em uma referência à visão aceleracionista de apressar o desenvolvimento da tecnologia para resolver os desafios da humanidade.
O Brasil, segundo Santos, ainda dá os primeiros passos para adotar tecnologia no dia a dia. “Quando eu fundei a Semantix, em 2010, as pessoas mal sabiam o que era aprendizado de máquina”, afirmou. “A gente teve de evangelizar os clientes, evangelizar os investidores e mostrar que a gente gerava valor”, acrescentou.
“No ano que vem, queremos encher um estádio”, diz ele.
No lado oficial, quem divulga o otimismo tecnológico é a Abria. Em uma audiência pública convocada pelo senador Astronauta Marcos Pontes (PL), o conselheiro da entidade Luis Fernando Prado criticou o texto por supostos excessos.
Os pontos problemáticos para a associação eram a necessidade de uma avaliação preliminar dos riscos criados pelas ferramentas de IA, a obrigação de explicação de como os algoritmos funcionam e o trecho que diria respeito aos direitos autorais.
“Me parece muito duro e desproporcional que a empresa de IA possa ser punida e responsabilizada por erros que aconteçam na fase de testes”, afirmou. A sessão reunia, além dele, outros grupos de pressão ligados a gigantes da tecnologia para falar dos benefícios da “autorregulação”.
Santos, da Semantix, diz que a associação conseguiu ajudar o Senado a melhorar muito o texto. “Mas precisamos avançar ainda mais na Câmara para manter o país competitivo”, afirma.
“O Brasil não pode perder o bonde porque é um mercado de trilhões de dólares até 2030”, acrescenta.
Desvendando IA
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Para Ibrahim, não é uma questão só de negócios. “O país que não adotar uma economia de base tecnológica não vai acompanhar a mudança estrutural dos empregos e ficar sob o risco de viver um desemprego estrutural.”
Segundo ele, o choque tecnológico da inteligência artificial já está acontecendo. “É uma disrupção nos alicerces da economia e da sociedade.”
noticia por : UOL