Assisti ao filme “Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa” no cinema. Devia fazer mais de 20 anos que não visitava a Vila Abobrinha e encontrava seus moradores: o Nhô Lau, dono da goiabeira, as crianças Zé Lelé, Rosinha, Zé da Roça e Hiro, os pais de cada um deles, a professora e até a galinha Giselda.
A Turma da Mônica e as demais turmas do Maurício de Sousa acompanharam toda minha infância de um modo peculiar. Não bastava para mim ir ao parque uma vez ao ano, comer a maçã e ler um gibi na escola de vez em quando. Vivia no site da turminha, entrava no bate-papo online, enviava e-mails para a equipe de roteiristas dando minhas ideias de historinhas.
Mais do que isso. Era um colecionador-mirim dos mais dedicados. Anotava em um arquivo todos os números de revistinhas que eu tinha, separando por personagem. Da mesma forma, no armário, tinha a pilha de gibis da Mônica, do Cebolinha, do Cascão, da Magali e do Chico Bento, sem falar nos “Almanaquinhos” e “almanacões”. As revistinhas ficavam organizadas em ordem decrescente, com as mais novas no alto do monte e as mais antigas na base.
Para incrementar a coleção, deixava uma cópia do catálogo com meu pai, para que procurasse em sebos os números que faltavam para eu completar a coleção. De tempos em tempos ele aparecia com uma mala cheia de revistinha velha, para minha felicidade.
Na segunda metade dos anos 1990, eu aprendia a evolução da inflação brasileira e as diferentes moedas que o Brasil teve para tentar combatê-las, olhando o preço nas capas das revistinhas dos anos anteriores. Quando conseguia uma ainda mais antiga, da Editora Abril, primeira a publicar os gibis, sentia como se houvesse recebido uma relíquia antiquíssima, dos longínquos anos 1970. Via propagandas de cursos por correspondência, números de telefones para os quais um dia se podia ligar para ouvir historinhas e um monte de brinquedos e guloseimas que naquela época já tinham ficado na história.
Almoçava e jantava com um gibi do lado, os levava para o carro, o sofá, o banheiro e a cama. Lia e relia as mesmas histórias e sofria quando a capa de um se estragava depois de tanto manuseio.
Com o tempo, porém, as letrinhas e as figuras foram ficando a cada dia mais embaralhadas. Até que a visão passou a ser pouca até para entender as imagens. Agora, quando consigo perceber que há uma revistinha na frente com os olhos, já é muito.
Com isso, a coleção passou a ser de usufruto exclusivo de meu irmão mais novo. Até que ele se casou e não a levou. Nem eu nem ele temos espaço para guardar tanta revistinha e menos ainda coragem de se desfazer delas, que estão sob guarda de minha mãe. Para que ela não as devolva aos sebos de onde vieram, usamos a desculpa de que um dia vamos ter filhos e filhas e os pequenos vão aprender muito com as historinhas, mesmo que os tiros de espingarda de sal no bumbum do Chico Bento ou as coelhadas na cabeça do Cebbolinha e do Cascão dos tempos daqueles gibis sejam ainda menos toleradas quando eles aprenderem a ler.
Mesmo com as revistinhas longe de mim por tantos anos, o tempo não foi suficiente para que, no cinema, mesmo sem ver, eu ainda lembrasse com alegria do traço de cada um daqueles personagens, dos principais até aqueles que só os mais aficionados sabiam da existência.
Por tudo isso, eu era só saudade naquele cinema, uma saudade mais gostosa do que goiaba apanhada do pomar do vizinho.
A acessibilidade cresceu muito desde a última vez em que li um gibi. Naquela época, nem se imaginaria que um dia alguém com deficiência visual baixaria um aplicativo para assistir um filme no cinema com audiodescrição e poderia compreender tudo. Menos ainda que reviveria lembranças há tanto tempo adormecidas.
A próxima fronteira a ser desbravada na inclusão cultural poderia ser tornar acessíveis histórias em quadrinhos para meninos e meninas que não enxergam. Inclusive a criança de mais de 35 anos que voltei a ser naquela noite.
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noticia por : UOL