Desde o começo de “Na Ponta da Língua”, Caetano Galindo deixa claro que o português do dia a dia é feito mais de pangarés do que de garanhões —isto é, o que tende a sobreviver ao tempo são termos como “caballus”, raiz do nosso cavalo, usada em Roma para denominar animais menos nobres do que os “equus”, presentes hoje em palavras mais eruditas, como “equino” e “equitação”, e na fêmea, “égua”.
O novo livro do escritor e tradutor percorre o corpo humano, passando sem pudor pelas partes “pudendas” —ou íntimas— e investigando a origem dos nomes que damos aos nossos pedaços.
Galindo se permite digressões e gracejos e gasta mais tempo investigando as palavras mais interessantes, e menos com as que não surpreendem. Seu objetivo declarado é instigar a curiosidade dos leitores, mas ele enxerga outros potenciais para o projeto.
“Acho extremamente importante —politicamente, historicamente— que o brasileiro tome posse da sua língua. Isso envolve saber de verdade como essa língua se formou, como ela chegou a ser como é hoje, de onde ela vem, por onde ela passou, que tipo de impressões políticas já se exerceram e ainda se exercem sobre ela. O quanto essa arena que não é legislável, regida pelo uso comum dos falantes, foi cooptada politicamente por uma elite que se coloca no direito de dizer como você pode falar. Isso é extremamente cruel.”
O projeto nasceu como um plano B. Galindo havia investido dois anos em uma tese que interpreta toda a produção de James Joyce como uma única obra para a defesa da sua titularidade na Universidade Federal do Paraná.
A pouco mais de um mês do depósito, percebeu que não estava convencido do que entregaria e decidiu mudar de estratégia. Com a bênção de seu orientador, o linguista Carlos Alberto Faraco, apresentou um projeto de divulgação científica em sua defesa, prática pouco habitual na academia, e que trouxe seus desafios.
“O treinamento na academia, e especialmente nas humanas, em que a gente normalmente não lida com verdades objetivas e quantificáveis, é muito de abrir espaço para o senão, de registrar exceção”, afirma. “Essa linguagem, feita em nome de não falar bobagem, não cai bem para o público geral, que está acostumado com o ‘você sabia?”.
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Dá para ver que Galindo não perdeu de vista a concorrência das páginas de curiosidades e as fake news de WhatsApp quando escreveu o livro.
A obra estabelece um diálogo franco com o leitor, no papo casual e relaxado que já aparecia em “Latim em Pó” —estilo que é uma marca do autor, vindo em partes de ter crescido numa família distante dos círculos intelectuais. “A gente às vezes peca por confundir rigor e seriedade com chatice”, afirma.
Os exercícios de etimologia devem mostrar ao mais fiel amigo das gramáticas prescritivas que mesmo o português mais correto é fruto de séculos de distorções do baixo escalão. Por que as ditas incorreções do português popular de hoje, então, não seriam caminhos legítimos para a língua? Como ele escreve em certo momento, “o uso não quer saber de pedigrees e trata todas as palavras como matéria de invenção e expansão”.
Para Galindo, o pudor descabido não está só na defesa da norma culta. Também aparece na condenação de termos tidos como politicamente incorretos, muito a partir de argumentos que não param em pé.
“Você não ganha nada usando os mesmos mecanismos de que reclama, de ser um grupo de pessoas que é capaz de determinar o que que é certo e o que é errado, o que pode ou não. Se eu reclamo disso, não posso querer pegar esse poder para mim.”
O livro chega ao público acompanhado de uma exposição no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, “Fala Falar Falares”, organizada pelo escritor e por Daniela Thomas e em partes responsável pelo surgimento da obra. Dedicada a mostrar ao público o valor e a diversidade da fala, a mostra fica em cartaz até 14 de setembro.
noticia por : UOL