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Cuiaba - MT / 6 de junho de 2025 - 15:55

A vida que a política ignora

Fernando Sabino tem uma crônica famosa (tanto quanto uma crônica pode ser famosa neste país de analfabetos funcionais) na qual ele descreve um casal num boteco fuleiro da Gávea. Enquanto ele toma um café no balcão, um “casal de pretos”, nas palavras dele, celebra o aniversário de uma “negrinha de três anos”. Novamente: os termos são do cronista.

Que escreve sem a preocupação contemporânea com o puritanismo perverso do politicamente correto. Pelo contrário. Tudo ali é um convite à pureza. À contemplação da pureza. Tanto que o texto, intitulado “A Última Crônica”, geralmente é mencionado por aí como exemplo de pieguice, quando não de um sentimentalismo social rasteiro. Uma tremenda injustiça, fruto dos nossos corações endurecidos e iludidos pela mentira de que as decisões de meia dúzia de imbecis em Brasília interferem na nossa capacidade de amar o próximo.

Não sei vocês

Exemplo disso que os cínicos têm por pieguice é este trecho que quase conclui a crônica: “A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso”.

Não sei você, mas. (…) Caramba. Não sei vocês. (…)(…) [RESPIRA FUNDO] (…). Não sei vocês, mas eu leio e releio esse trecho e só consigo pensar na nobreza daquela família pobre, mas inquestionavelmente digna. Uma família reunida em torno de uma única fatia de um bolo simples, amarelo-escuro, encimado por três velhinhas finas. Gente feliz e em paz. Numa paz que ao leitor contemporâneo pode parecer inalcançável, só porque é gente pobre e o dinheiro se tornou a medida de todas as coisas.

Crise

Me lembrei da crônica hoje, justamente hoje, dia de chuva, frio, tristeza e crise. Hoje. No meio de uma semana que acumula notícias ruins, tão ruins que beiram o desesperador. Hoje, no dia em que acordei me fazendo perguntas duras, inclusive sobre minha vocação e meu trabalho de “recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”.

Coisas do tipo: qual o conteúdo humano, verdadeiramente humano, dessa vida diária que se vive nas redes sociais? O conteúdo humano que torna a vida mais digna de ser vivida é, segundo o cronista, fruto da convivência. Como explicar isso para um leitor que abomina a convivência, ainda mais se ele tiver de conviver com pessoas das quais discorda? E por fim: há dignidade numa vida vivida em função do noticiário e da disputa de poder?

Pura

Sabino encerra a crônica dizendo que era assim que ele queria que fosse sua última: pura como o sorriso daquele homem. É assim também que quero minha última, que não é esta. (Espero). Quero-a pura como o sorriso de um homem que com muito esforço consegue juntar um dinheirinho para comprar uma fatia de bolo e três velinhas para o aniversário da filha. E que, com essa cena de abnegação, humildade, discrição e amor, consegue construir um monumento à dignidade humana.

Quero-a pura como o olhar constrangido, curioso e emocionado de quem, ao testemunhar o sorriso de seu semelhante, se reconhece pequeno diante da imensidão da vida. Dessa vida que não ganha as manchetes, não viraliza nem engaja. Mas é vida, sim. Muito mais vida do que essa sucessão de reações, de picos de dopamina, de likes e dislikes, de dois ou mais minutos de ódio, de ostentação tanto do dinheiro quanto da “virtude”, de mentiras e abstrações e orgulho e vazios que jamais serão preenchidos, e que ainda assim, talvez por falta de uma palavra melhor, insistimos em chamar de… vida.

noticia por : Gazeta do Povo

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Cuiaba - MT / 6 de junho de 2025 - 15:55

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