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Cuiaba - MT / 7 de fevereiro de 2025 - 7:11

A guerra política e fashion dos bonés, que vai do Oscar a Brasília e envolve até a China


Criado originalmente para o beisebol, boné vive onda de frases de efeito que repercutem na cultura e na política brasileira. Boné tem sido usado como artigo de pertencimento
Reuters e Reprodução
O barulho das máquinas de bordar bonés não para no andar subterrâneo da histórica Galeria do Rock, no centro de São Paulo.
Em meio a um painel com imagens de caveiras, logos de marcas americanas e escudos de times de futebol, a comerciante Graziele Ferreira recebe ligações de clientes querendo desenhos que não se encontram no mostruário.
Nos últimos meses, por exemplo, foram vários os pedidos por bonés vermelhos inspirados no slogan da campanha de Donald Trump nos Estados Unidos, o Make America Great Again (Faça a América Grande Novo) – uns em apoio, outros com algumas modificações irônicas da frase original.
Também foram encomendadas as peças laranjas com o nome do álbum Caju, da cantora Liniker, além da peça estampada com a frase “a vida presta”, dita pela atriz Fernanda Torres logo após ser indicada ao Oscar de melhor atriz por seu papel no filme Ainda Estou Aqui.
É que agora funciona assim: bombou na internet ou no noticiário, logo vai parar na cabeça dos brasileiros, explica Graziele, há 15 anos trabalhando com a confecção de bonés.
Nos últimos dias, o boné também ganhou de vez a arena política no Congresso, em Brasília. Tudo começou com os parlamentares governistas, capitaneados pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, com o acessório azul escrito “O Brasil é dos brasileiros”.
O movimento acontece após o governo Lula mudar o ministro da Secretaria de Comunicação, cargo agora ocupado por Sidônio Palmeira, marqueteiro da campanha petista em 2022 e quem escolheu o slogan, segundo Padilha.
O azul e a frase contrastam com o vermelho do boné de Trump usado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), no dia da posse do republicano, em janeiro.
No dia seguinte à estreia do boné azul do governo, no início do que tem sido chamado de a “guerra dos bonés”, deputados bolsonaristas apareceram com a frase “comida barata novamente” na cabeça, em alusão à inflação dos alimentos.
Em serviços de customização de bonés pelo país, já há uma procura pelos acessórios políticos.
“Apesar de não trabalharmos com pedidos individuais, temos recebido contatos nas redes sociais, de pessoas dos dois lados [do espectro político]”, diz Artur Pinheiro, um dos sócios da Seu Boné, uma das principais empresas do setor, com mais de 100 funcionários e sede no Rio Grande do Norte.
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Lojas na Galeria do Rock, em São Paulo, personalizam bonés
Vitor Tavares/BBC
O novo presidente da Câmara, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), chegou a criticar a disputa: “Boné serve para proteger a cabeça do sol, e não para resolver problemas do país”, disse.
Motta pode estar certo quanto a não resolver problemas do país, mas erra ao colocar a função do boné como única e exclusivamente para proteger do sol, como mostra a própria história da peça.
“Na hora que você está interagindo com uma pessoa, o boné meio que te obriga a interagir com ele também”, explica Gustavo Berti, pesquisador do projeto Ecomuseu do Boné, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), em Apucarana (PR).
“O boné está ligado à forma que uma pessoa interage com o mundo, e é aí que entra o boné como um meio de propagação ideológica. Ele consegue condensar ideias e conceitos complexos num objeto que é versátil”, completa.
Apucarana, onde estuda Berti, é considerada a “capital nacional dos bonés” por concentrar cerca de 70% produção da peça no Brasil, reunindo de fábricas de tecidos e linhas ao serviço de bordado desde os anos 1970.
Por mês, são produzidos de 3 a 4 milhões de bonés, de acordo com o Arranjo Produtivo Local (APL) de Bonés de Apucarana.
Segundo Jayme Leonel, coordenador do APL, a rapidez das fábricas brasileiras em reagir justamente às modas que chegam aos bonés é um dos motivos que fez a indústria local resistir nos últimos anos à concorrência chinesa.
“É um mercado muito dinâmico, ainda mais com a internet, as pessoas querem sempre para ontem o seu boné da moda. Em cinco dias, conseguimos entregar o que a China levaria 40”, revela Leonel.
Em Apucarana, diz o líder empresarial, já há pedidos de produção dos bonés azuis usados pelos apoiadores de Lula, por exemplo.
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Breve história do boné
Jogadores de beisebol foram os primeiros a usar bonés, no século 19
Getty Images
Derivado do chapéu – usado desde a Grécia antiga –, o boné tem sua história ligada à cultura esportiva nos Estados Unidos, especialmente ao beisebol.
Em meados do século 19, a peça foi criada como uma alternativa para os jogadores se protegerem do sol em campo.
A ideia era que ela ficasse justa na cabeça, para não cair em corridas, e que permitisse ao jogador visualizar melhor o ambiente na comparação com tradicionais chapéus de palha.
“Essa criação do boné foi feita por partes, porque primeiro eles tinham que firmar a modelagem. Só aí que eles passaram a trazer algum logo do time, um bordado do mascote”, diz Gustavo Berti, da UTFPR.
No início do século 20, algumas indústrias se consolidaram para produzir a peça, especialmente a New Era, que se tornou sinônimo do acessório nos EUA – e segue sendo.
Segundo o pesquisador, o boné seguiu sendo muito ligado ao mundo esportivo e à indústria de brindes (para ações pontuais de empresas) até os anos 1980.
Foi nessa época que a New Era passou investir em anúncios em jornais e as peças começaram a ganhar as cabeças de artistas, principalmente os ligados ao mundo do hip hop.
Dos artistas e jogadores, ele passou a ganhar a cabeça das pessoas e a ser visto como parte da moda – nos EUA e também no Brasil.
Em Apucarana, onde a indústria começou a florescer nos anos 1970 produzindo os acessórios para grandes empresas distribuírem, como o Banco do Brasil, conta-se muito a história de Ayrton Senna.
O piloto de Fórmula 1 era fotografado com o boné azul e branco do Banco Nacional – e logo fez com que a demanda pelas peças estourassem nas fábricas da cidade. Ou seja, uma peça que seria de propaganda se tornou um desejo fashion.
Era uma história que se repetiria diversas vezes na indústria da cidade nos anos que se seguiriam.
Na última década, os empresários perceberam uma nova onda: a de customização, segundo Jayme Leonel, líder dos empresários da cidade do Paraná.
“Por muito tempo, só fazíamos bonés promocionais. De oito anos para cá que se fortaleceu a questão de encomendar peças personalizadas”, explica.
Na outra ponta da cadeia, na loja da Galeria do Rock, Graziele Ferreira diz que percebe um momento de alta nos bonés com frases de efeito, incluindo no período de Carnaval.
“Mas o boné não para, nunca saiu de moda, só vai se adaptando”, diz.
Escultura de boné em Apucarana, capital nacional do boné, que viu a indústria surgir a partir dos anos 1970
Prefeitura de Apucarana
Propagação ideológica
Mas, além da moda e do marketing de empresas, a política também é um terreno fértil para bonés. Nos anos 1990, campanhas distribuíam a peça com o número do candidato.
Mais recentemente, como a própria guerra de bonés em Brasília mostra, a peça ganhou proeminência. O exemplo mais citado pelos empresários do setor é a peça popularizada pelo empresário e ex-coach Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo nas eleições de 2024.
As peças em azul-escuro ou com um “M” grande “foi febre” em pedidos online, diz Artur Pinheiro, empresário da Seu Boné.
O uso do boné como um meio de propagação ideológica sé dá principalmente pelo lugar que ele ocupa: a cabeça, “o lugar mais alto do corpo”, explica a professora de design de moda na UTFPR, Naomi Nagamatsu.
“Ele está localizado junto aos olhos, à boca, às expressões do rosto – ou seja, basicamente tudo que você usa para interagir com outra pessoa”, completa Gustavo Berti
A versatilidade do boné também é um diferencial em termos de propagar alguma mensagem política.
Ele é fácil de colocar e tirar, tem utilidade no sol ou no frio e é mais fácil de se adaptar para várias pessoas – diferentemente de uma camisa, que tem vários tamanhos.
“É impossível pensar no Donald Trump sem o boné. A mensagem dele está ali, a cor do partido. É como uma extensão do presidente e das políticas dele”, diz Berti.
No Brasil, um dos exemplos históricos é o boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que funciona como símbolo do grupo e também é usado por pessoas ideologicamente à esquerda.
Nas empresas de Apucarana, segundo o Jayme Leonel, essa peça é uma das que sempre tem demanda.
A importância do boné é tanta que, no primeiro mandato de Lula, uma CPI chegou a ser aberta pela oposição para investigar o MST após o então presidente colocar boné do grupo na cabeça num evento.
“Ao ser um propagador de conceitos e ideias, o boné causa esse senso de união, de pertencimento”, explica o pesquisador Gustavo Berti.
E esse sentimento vai além da política e se envolve na indústria cultural, como o recente exemplo de lojas vendendo no Instagram o boné “da Fernanda Torres”, com a frase “a vida presta”.
Na avaliação dos pesquisadores, numa peça só, as pessoas experimentam um apoio à atriz, uma alegria por sua projeção internacional e, principalmente, uma conexão com quem sente o mesmo.
Boné do MST virou símbolo do movimento
Orlando Kissner/AFP via Getty Images
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Fonte: G1

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