Nas últimas décadas, o Brasil viu crescer o poder e a abrangência de facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). A dimensão e a letalidade dessas organizações transbordaram fronteiras nacionais, despertando preocupações além do âmbito policial ou penitenciário.
O tema ganhou maior visibilidade no cenário doméstico quando um representante do governo dos Estados Unidos – Richard Gamble, responsável pelo setor de sanções do Departamento de Estado americano – esteve no Brasil para, dentre outras pautas, dialogar com autoridades locais sobre a possibilidade de o País classificar formalmente essas facções como grupos terroristas.
O interesse dos Estados Unidos reflete preocupação crescente com a expansão da internacionalização das redes criminosas sul-americanas. Já presentes em mais de 12 estados americanos e com fortes vínculos com organizações criminosas mexicanas e colombianas, sobretudo, a questão caminha para se converter em ameaça à segurança hemisférica, tendo em vista sua capacidade de corrupção, infiltração e captura de estados nacionais, à semelhança do mais notório narcoestado latino-americano, a Venezuela.
Nesse cenário, o debate sobre a caracterização do PCC e do CV como grupos terroristas teoricamente entraria na zona cinzenta da definição contemporânea de terrorismo. A posição oficial do Brasil – como manifestada pelo Secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, ao recusar a classificação desses grupos como terroristas sob o argumento de que “não atuam em defesa de uma causa ou ideologia, mas pelo lucro” – merece análise crítica, especialmente à luz dos estudos internacionais mais avançados sobre o tema.
A definição tradicional – e ultrapassada – de terrorismo, especialmente nos anos 1970 e 1980, frequentemente incluía a presença de uma motivação política ou ideológica como critério essencial. No entanto, parte significativa da literatura acadêmica e das principais convenções internacionais evoluiu para enfatizar muito mais o método (uso sistemático da violência, intimidação e terror contra civis ou autoridades), do que a natureza da causa defendida.
Bruce Hoffman, um dos principais estudiosos do tema, afirma que terrorismo é, essencialmente, “a violência deliberada destinada a causar medo, perpetrada por atores não-estatais para atingir objetivos políticos, religiosos ou sociais”. Em nenhum momento, no entanto, ele restringe o conceito à defesa de uma ideologia – uma característica secundária, não fundamental.
A Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (ONU), de 1999, define terrorismo pelas ações de intimidação ou coação à população ou a um governo, independentemente da natureza da motivação.
A Convenção Árabe para a Supressão do Terrorismo, adotada pelo Conselho Árabe de Ministros do Interior em 1998, no Cairo, define terrorismo como: qualquer ato ou ameaça de violência, quaisquer que sejam seus motivos ou propósitos, que ocorram visando a promover uma agenda criminosa, coletiva ou individual, ou procurando disseminar pânico entre as pessoas, causando medo, ou as ferindo, ou colocando suas vidas, propriedade e segurança em perigo, ou procurando causar danos ao meio ambiente ou a propriedades e instalações públicas ou privadas, ocupando-as ou atacando-as, ou buscando colocar em perigo recursos nacionais
O ponto de partida teórico-metodológico para essas definições é a noção de que o traço primário definidor por excelência do terrorismo não é a sua finalidade, o objetivo da causa defendida – ainda que isso seja essencial para o estabelecimento de sua classificação tipológica – mas sim o método de ação utilizado, a estratégia. Vejamos alguns exemplos que ilustram a importância de bem se compreender a questão:
- 14 de janeiro de 1858: o agitador italiano Felice Orsini atira três bombas sob a carruagem do Imperador francês Napoleão III, considerado o maior obstáculo ao progresso da unificação italiana, que escapa ileso.
- 28 de junho de 1914: o jovem nacionalista sérvio Gavrilo Prinzip, integrante da organização clandestina Mão Negra, aproxima-se do carro do Arquiduque austríaco Francisco Ferdinando e dispara sua pistola contra o herdeiro do Império Austro-Húngaro, assassinando-o; com isso, estava criado pretexto justificável para que fosse iniciada a I Guerra Mundial.
- Anos 40: a resistência francesa organiza uma sistemática e eficiente campanha de assassinatos de militares alemães das tropas de ocupação. As forças nazistas, em represália, massacram milhares de habitantes em toda a França.
- 23 de outubro de 1983: veículos-bomba explodem o acampamento do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, em missão de manutenção de paz da ONU em Beirute, capital do Líbano, matando 241 pessoas, e o posto de comando do contingente francês, com 58 mortos.
- 30 de julho de 1997: dois suicidas palestinos detonam bombas presas a seus corpos no movimentado mercado judeu Mahané Yehuda, em Jerusalém, causando a morte de 15 pessoas e ferindo mais de 150.
- 7 de agosto de 1998: dois atentados simultâneos devastam as embaixadas dos Estados Unidos em Dar es-Salam (Tanzânia) e Nairóbi (Quênia), causando a morte de 257 pessoas e ferindo mais de 5 mil.
- 13 de outubro de 2002: duas explosões – atribuídas a grupos ligados à Al-Qaeda – devastam uma boate e um restaurante no paraíso turístico tropical de Bali, na Indonésia, deixando um saldo de pelo menos 188 mortos e cerca de 200 desaparecidos, entre os quais pelo menos dois brasileiros.
- 15 de abril de 2013: dois jovens chechenos radicados nos Estados Unidos explodem duas bombas caseiras durante a realização da Maratona de Boston, aparentemente sem motivo, causando a morte de três pessoas e ferindo mais de 260.
Quais desses acontecimentos podem ser considerados típicos atos de terrorismo? Quais representam simples atos isolados e esporádicos de criminalidade comum, intimidação ou terror? Terrorismo e terror significam a mesma coisa? Quem é e quem não é terrorista, na visão de quem? O solitário autor suicida de um atentado a bomba, o guerrilheiro rebelde, a frente de libertação, as forças armadas do Estado, o próprio Estado?
Não se trata de um fenômeno simples, de contornos maniqueístas, em que se pode identificar imediatamente um lado bom e outro mau. A linha divisória entre a política de ameaça de uso e o uso da guerra dissimulada ou aberta é bastante tênue.
Pode-se, então, conceituar terrorismo como o método ou teoria por trás do método em que um grupo organizado procura atingir suas finalidades declaradas – sejam políticas, financeiras, criminosas etc. – por meio do uso motivado, premeditado e sistemático da violência física ou psicológica ilegal contra populações não-combatentes, para inculcar um estado de terror generalizado, de forma a intimidar ou coagir um governo, a população civil ou um segmento da sociedade.
Terror deliberado
Essa conceituação é particularmente significativa. Ideólogos terroristas e narcoestados, com frequência, elaboram distinções que não deveriam ser feitas, ressaltando a importância dos objetivos finais para torná-los moralmente justificáveis aos olhos da sociedade. Entretanto, o que é ou não é terrorismo não depende da causa poder ser qualificada de “boa” ou “má”, nem de quem a defende, ou de se ter a oportunidade de conseguir expressar suas reivindicações democraticamente.
É incontestável que tanto o PCC como o CV utilizam métodos terroristas, ao recorrerem sistematicamente à violência política e à intimidação: executam atentados contra estruturas do Estado (delegacias, ônibus, órgãos do sistema judicial), empregam sequestros, explosões de bancos e ataques coordenados para gerar medo na população e condicionar as ações do poder público – notadamente, ações de retaliação a movimentações no sistema penitenciário.
Mesmo que o objetivo principal seja garantir rotas de tráfico, domínio territorial ou impedir transferências de lideranças para presídios de segurança máxima, a escolha do método – provocar terror deliberado na população e nas autoridades – é o que deveria ser determinante para a classificação.
Não é incomum, aliás, que organizações listadas como terroristas internacionalmente tenham, em algum momento de sua trajetória, motivação híbrida – um misto de política, lucro e defesa de privilégios. O IRA (Exército Republicano Irlandês), por exemplo, por vezes financiava suas atividades por meio de extorsões, contrabando e tráfico. É fartamente documentada a participação do movimento terrorista libanês Hizbollah no tráfico internacional de drogas.
Focar exclusivamente na “causa defendida” cria risco de fomentar impunidade e permitir que organizações adaptem seu discurso, omitindo ou alterando suas motivações para escapar da legislação antiterrorista. Mais importante ainda: desconsidera o sofrimento da população submetida à lógica do terror, independentemente do interesse que move o grupo.
Da mesma forma, a corrupção promovida por grandes facções criminosas/terroristas não é apenas um problema moral ou ético, mas um desafio estrutural à própria existência do Estado democrático e de direito. Ao desestabilizar as instituições, reduzir a eficácia das políticas públicas e corroer a confiança social, facilita-se um cenário propício à violência, à desigualdade e à perda da soberania estatal.
Aqui reside o refinamento perverso do PCC e do CV, entusiastas do pragmatismo tropical. Seus ataques coordenados a ônibus e delegacias, seus sequestros pirotécnicos e retaliações espetaculares não têm pretensão de vestir a aura fatigada das causas, mas não deixam de cumprir o papel essencial: gerar medo, desmobilizar o Estado, subjugar a população. Se os métodos coincidem milimetricamente com o manual do terrorismo é mera coincidência? Talvez com um bom slogan (“Por uma sociedade livre do Estado opressor!”), o rótulo seria facilmente concedido…
A recusa do governo brasileiro em considerar PCC e CV como terroristas, a partir de um critério motivacional, revela postura “confortável”, mas descolada tanto da realidade de quem vivencia o terror dessas facções quanto das reflexões internacionais mais recentes. O Brasil, pressionado por desafios que extrapolam o simples crime patrimonial, precisa atualizar seus conceitos para responder adequadamente à gravidade dos métodos empregados por organizações criminosas cada vez mais sofisticadas e letais, sob pena de perdermos mais esse combate.
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa
noticia por : Gazeta do Povo