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Cuiaba - MT / 13 de março de 2025 - 6:03

A inflação do grotesco: três porquinhos são deixados para morrer em exposição

As porcas têm, em média, entre 12 e 16 tetas. Mas podem parir ninhadas maiores do que são capazes de alimentar, principalmente em sistemas intensivos. Na Dinamarca, um dos maiores produtores e exportadores de carne suína do mundo, cerca de 30 mil leitões morrem todos os dias justamente por perder a competição pelo leite da mãe. 

Essa é a lógica que estimulou o artista Marco Evaristti a criar a instalação And Now You Care? (“E Agora Você se Importa?”), inaugurada no início do mês em um antigo armazém de Copenhague. Com o intuito alegado de denunciar a crueldade animal num país tão conhecido por seus avanços sociais, ele prendeu três filhotes em uma gaiola feita com carrinhos de supermercado e os deixou sem comida e água.

Segundo Evaristti, um chileno radicado na Dinamarca desde a década de 1980, os porquinhos morreriam em cerca de cinco dias — período em que ele também ficaria em jejum. E enquanto Lucia, Simon e Benjamin (nomes das três vítimas) agonizavam, pinturas gigantes da bandeira dinamarquesa e de suínos abatidos eram expostas nas paredes do local.

A proposta, no entanto, saiu do controle. Pois o inesperado roubo dos leitões, no dia seguinte à estreia da exposição, acabou colocando o artista em evidência de forma negativa na imprensa internacional — a ponto de ser procurado por veículos como ABC News, The New York Times, BBC e Newsweek

De acordo com Evaristti, um amigo dele facilitou a entrada de um grupo de ativistas ambientais no armazém antes da abertura para o público. E, pelo que se sabe, os sequestradores levaram Lucia, Simon e Benjamin para um santuário, onde o trio agora curte a aposentadoria após a breve carreira artística. 

Peixinhos triturados e almôndegas humanas 

Marco Evaristti não é um novato nesse tipo de expediente escandaloso. O chileno já convidou os espectadores a triturar peixinhos dourados em liquidificadores, tingiu de rosa um gêiser na Islândia e vendeu almôndegas preparadas com a gordura de seu corpo (retirada por meio de uma lipoaspiração). 

Ciente (e cansada) de suas tentativas de transgredir, a crítica dinamarquesa não recebeu bem a instalação com porcos — definindo-a como “cruel”, “abusiva” e “ligada a uma vanguarda antiquada”. E mesmo a ONG Animal Protection Denmark, a mais expressiva do gênero no país, afirmou: “Concordamos com a crítica, mas privar animais de comida é crime, não arte”. 

Em entrevista ao The Wall Sreet Journal, Evaristti contou que foi criado como católico, porém descobriu na adolescência a origem judia de sua mãe. Segundo ele, essa revelação moldou todo o conceito de sua obra, que desafia o público a buscar significados profundos em cada novo trabalho. “Toda essa crueldade se origina do fato de eu ser um humanista”, disse. 

Na última segunda-feira (10), o artista comentou o episódio e se justificou em sua conta no Instagram. “Espero ter ajudado a conscientizar as pessoas quanto ao tratamento dado aos seres vivos que compartilham este mundo conosco.” 

Ele ainda deixou no ar, na opinião de alguns seguidores, que o roubo de Lucia, Simon e Benjamin também fez parte do projeto — em um trecho do post, Evaristti diz: “Os três pequenos porcos, que estiveram no centro de tanta atenção e crítica, estão agora em mãos seguras, onde são cuidados com todo o carinho que merecem”.

Embalado pela repercussão de And Now You Care?, Marco Evaristti já prepara a próxima a investida. Ao jornal dinarmaquês Ekstra Blade, o chileno afirmou: “Estou no processo de adquirir animais que morreram de fome ou em outras circunstâncias terríveis na produção industrial. Quero exibi-los em uma geladeira transparente até ela estourar, para mostrar como são espremidos em gaiolas”. 

Uma tradição de provocações e escândalos 

A instalação dos três porquinhos da Dinamarca integra uma tradição de obras concebidas por artistas dispostos a chocar para despertar a atenção do público. 

E não estamos falando de “A Origem do Mundo” (1866), quadro de Gustave Courbet que escandalizou a sociedade francesa por retratar uma vulva em close-up. Nem do célebre mictório apresentado como arte por Marchel Duchamp em 1917. 

Trabalhos como o de Marco Evaristti dialogam mais diretamente com produções marcadas por elementos como sexualidade explícita, violência, automutilação e, claro, o sofrimento animal. Como a icônica performance “Shoot” (1971), do americano Chris Burden, baleado no braço por um assistente em nome de uma reflexão sobre a “vulnerabilidade e a experiência do perigo”. 

Ou as ações dos chamados “acionistas vienenses” — figuras como Hermann Nitsch, Günter Brus e Rudolf Schwarzkogler, que simulavam sacrifícios com nudez e vísceras de animais como forma de “reação à repressão sexual” na Áustria da década de 1960. 

E o que dizer da pioneira francesa Orlan, ainda em atividade, conhecida por usar o próprio corpo como objeto de discussão? Nos anos 1990, ela se submeteu a uma série de cirurgias plásticas ao vivo, com a intenção de criticar os padrões de beleza da sociedade. 

Mesmo um dos nomes mais valorizados da atualidade, o britânico Damien Hirst, é famoso por adotar a polêmica como estratégia de atração do espectador (ou de marketing, como preferem dizer seus críticos). Várias de suas obras usam animais mortos, conservados em formol, para “simbolizar a finitude e o sublime”.

A francesa Orlan: cirurgias plásticas ao vivo, para criticar os padrões de beleza da sociedade.
A francesa Orlan: cirurgias plásticas ao vivo, para criticar os padrões de beleza da sociedade.| EFE/ Mariscal

Teoria de Dessensibilização

Do tiro no braço de Burden aos leitões dinamarqueses deixados para morrer, percebe-se uma constante necessidade de elevar os limites da transgressão para impressionar o público. Essa “inflação do grotesco”, como denominam alguns especialistas, inclusive encontra paralelos em manifestações artísticas mais populares, como o rock and roll e o cinema. 

Alice Cooper, que levava cobras e sangue falso ao palco nos anos 70, hoje parece ingênuo se comparado a grupos de metal extremo como Cannibal Corpse (notório por letras sobre assassinatos e capas com mutilações hiper-realistas) ou Mayhem (cujos membros já se envolveram em crimes como homicídio, incêndio de igrejas e apologia ao nazismo). 

Já no campo audiovisual, a sugestão psicológica de um clássico como “Psicose” (1960), em que o susto vem do invisível, foi substituída pela violência explícita (com direito a longas de cenas de tortura) dos filmes da franquia de sucessoTerrifier

Ou seja, há uma exigência por impactos cada vez mais imediatos e brutais, explicada pela psicologia por meio da Teoria de Dessensibilização. Pesquisadores como Alberto Bandurra, Leonard Berkowitz e George Gerbner apontam que a exposição constante a estímulos perturbadores reduz nossa reação emocional — enquanto aumenta a aceitação de imagens agressivas.

Se a estética rapidamente se torna mais literal e menos metafórica, a pergunta que fica é: qual será o próximo nível? 

Já se cogita, por exemplo, o surgimento da “bioarte radical” (utilização de organismos geneticamente modificados que “sentem dor” em tempo real) e de experiências de realidade virtual imersiva em que o espectador é obrigado a torturar animais e pessoas para avançar na narrativa artística (numa espécie de videogame emocional). 

Como bem definiu o ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han, um dos maiores “filósofos pop” da atualidade, “A sociedade do cansaço não suporta o tédio, só o horror a distrai”. 

noticia por : Gazeta do Povo

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