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Cuiaba - MT / 28 de fevereiro de 2025 - 18:00

O dia em que o Itamaraty entrou para a infâmia

A nota emitida pelo Itamaraty nesta quarta-feira (26), sobre a breve manifestação da Divisão de Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado dos EUA que trata da ação ajuizada pelas empresas Rumble e TMTG (Trump Media and Technology Group, de propriedade da família do presidente Donald Trump) contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), possivelmente terá consequências significativas para o Brasil.

Isso ocorre porque, até a divulgação da mencionada nota, o contexto compreendia uma alta autoridade brasileira tornada ré em uma corte federal norte-americana no estado da Flórida por alegações que tratam, em termos gerais, de violações da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos (que dispõe sobre a liberdade de expressão e seu caráter absoluto) contra indivíduos e entidades privadas daquele país.

O Departamento de Estado publicou na rede social X comentário genérico segundo o qual decisões judiciais brasileiras “bloqueiam o acesso à informação e impõe multas a empresas norte-americanas que se recusam a censurar indivíduos residentes nos Estados Unidos”. O Itamaraty, ao publicar a Nota 99 (que, vale destacar, adota tom muito mais agressivo que o do comentário do Departamento de Estado no X), não apenas se colocou na indigna posição de ventríloquo dos interesses de Alexandre de Moraes, como também pôs o Brasil em rota de colisão direta com o governo dos Estados Unidos.

Ao que tudo indica, a referida nota, conquanto emitida pelo Itamaraty, foi redigida do outro lado da Esplanada dos Ministérios, com subsídios oriundos do próprio STF, decerto lavrada por asseclas obcecados por manter uma ilusão de poder a qualquer custo, inclusive mediante a destruição da reputação de uma instituição de Estado como o Ministério das Relações Exteriores, com o propósito de conferir uma falsa aura de legitimidade à espúria aliança entre Executivo e Judiciário que hoje atende pelo nome de “governo” no Brasil.

Quero crer que a cúpula da carreira diplomática, sobretudo aqueles que ainda teriam longa carreira pela frente, esteja ciente de que, por meio de uma manifestação oficial do Itamaraty, o Brasil entrou formalmente em um conflito político com os Estados Unidos que, além de não poder ser vencido, ou sequer equacionado, pelo País, deverá se estender até pelo menos o fim de 2026, desgastando ainda mais não apenas a já esquálida imagem internacional do Brasil, como também concorrendo para o aprofundamento da deterioração econômica nacional, dentre outros fatores.

O Itamaraty se colocou na indigna posição de ventríloquo dos interesses de Alexandre de Moraes

Um mea culpa se faz necessário. Afirmei, em artigo publicado nesta Gazeta em 6 de novembro do ano passado, que a eleição de Donald Trump, associada à obsessão lulopetista pelo erro e à indigência intelectual de nossos atuais formuladores de políticas públicas, poderia resultar no nível mais baixo das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos desde seu estabelecimento, em 1824. Minha avaliação, contudo, foi a de que a deterioração ocorreria ao longo de 2025 e de 2026. Não me ocorreu que Lula, seus acólitos Celso Amorim e Mauro Vieira e o consórcio pudessem ser capazes de incinerar as relações com Washington após meras cinco semanas desde a posse de Trump.

A concordância da chefia do Itamaraty com a nota divulgada é, para além de uma imbecilidade estratégica sem paralelo na história do Brasil, uma tragédia moral protagonizada por indivíduos sem coragem moral, pois se Vieira, o chanceler de enfeite, honrasse o legado do Barão do Rio Branco, teria preferido apresentar sua demissão ao presidente da República a permitir que uma nota como a mencionada fosse emitida pela pasta sob seu comando.

O episódio evidencia, para além da falta de rumos que permeia nossa diplomacia e da incapacidade para enxergar as consequências que tal manifestação poderá ensejar para a política externa e para a Nação brasileira como um todo, um comportamento deliberadamente torpe. De todo modo, e embora o Brasil não tipifique, em seu ordenamento jurídico civil, o crime de alta traição, a atitude de colocar em risco os interesses vitais do País para atender a interesses individuais espúrios é, no mínimo, crime de lesa-pátria.

Apesar de não contar, atualmente, com uma política externa – para não mencionar uma grande estratégia -, ao Brasil, por meio sobretudo do Itamaraty, correspondem atividades rotineiras no contexto das relações com outros Estados e organizações internacionais, bem como funções consulares. Ao colocar o País em um conflito aberto com os Estados Unidos, a irresponsabilidade do governo Lula poderá comprometer até mesmo o fluxo de tais tarefas, já que, caso o Brasil seja objeto de sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos, Brasília poderá enfrentar severas dificuldades para transferir recursos destinados à manutenção dos postos da rede diplomática e consular no exterior. Em última instância, convém destacar, os diplomatas e demais funcionários do Serviço Exterior Brasileiro lotados no exterior, que recebem seus salários em dólares norte-americanos, em contas baseadas nos EUA, poderão ter dificuldades incomensuráveis para dar curso adequado às suas respectivas vidas diárias.

A concordância da chefia do Itamaraty com a nota divulgada é, para além de uma imbecilidade estratégica sem paralelo na história do Brasil, uma tragédia moral protagonizada por indivíduos sem coragem moral

Isolada em seu entorno geoestratégico, sem voz na dimensão extracontinental, sem credibilidade no plano multilateral, sem projeto ou agenda externa e desprovida de recursos de poder políticos, diplomáticos, militares e morais, Brasília parece se agarrar ao quixotesco devaneio de que se autoposicionar na condição de antagonista estratégico de Washington terá o mágico condão de remover o País do subalterno papel atual de peão no tabuleiro de xadrez geopolítico global.

Washington não enxerga Brasília como antagonista estratégico, contudo. O Brasil sempre esteve à margem dos principais eixos da política externa norte-americana e lá permanece. No momento atual, se alguma prioridade parece estar sendo conferida ao Brasil, é apenas no sentido de demonstrar que é muito baixo o custo global de se aplicar medidas duras contra o País para demonstrar o compromisso da Administração Trump com suas diretrizes de governo.

Mais que referência cronológica do ponto mais baixo das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, o dia 26 de fevereiro de 2025 ingressará na memória institucional do Itamaraty como o mais ignominioso de seus mais de dois séculos de história. Os artífices da nota que atenta contra os interesses do Brasil entrarão, outrossim, no pavilhão simbólico destinado aos vilões da instituição e do País.

Tenho, contudo, plena certeza de que a a ampla maioria dos diplomatas não compactua com o cortejo de absurdos que tem caracterizado a condução da política externa brasileira desde janeiro de 2023 e, particularmente, com a despropositada manifestação oficial de 26/2. Quando o Brasil emergir das trevas em que ora se encontra, em janeiro de 2027, será com eles que um governo conservador de direita contará para reconstruir a imagem e a política externa do País, para o quê será indispensável a realização de uma reforma profunda na estrutura da carreira diplomática e do Ministério das Relações Exteriores.

Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa. 

noticia por : Gazeta do Povo

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