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Cuiaba - MT / 22 de fevereiro de 2025 - 13:43

Como o acordo MEC-USAID, feito durante a ditadura militar, impactou a educação brasileira

A primeira vez em que a Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID) provocou controvérsia no Brasil foi há seis décadas. Na época, entre junho de 1964 e meados dos anos 70, o Ministério da Educação firmou um total de 12 acordos com a organização americana. Quando os documentos vieram a público, a oposição reagiu com protestos e manifestações na imprensa — a ditadura militar já estava instalada, mas manifestações ainda eram toleradas. Os chamados “acordos MEC-USAID” iriam privatizar o ensino público e inviabilizar qualquer formação humanitária dos jovens, dizia-se, com exagero.

Mesmo após se passarem tantos anos, a USAID continua interferindo no Brasil, mas de modo diferente: mais de duas dezenas de ONGs brasileiras receberam ao menos R$ 267 milhões da agência nos anos de 2023 e 2024, segundo dados do governo americano.

Em 2021, a agência americana e o Tribunal Superior Eleitoral realizaram ao menos duas ações conjuntas, a pretexto de para combater “desinformação” e “notícias falsas” no período eleitoral. A organização banca organizações que atuam na Amazônia e em projetos em defesa do aborto, promoção de pautas LGBTQIA+, mídias “independentes” e ativismo digital ligado à política partidária, especialmente com viés de esquerda.

Nos anos 1960, o foco era diferente: a USAID foi contratada para fornecer subsídios e apoio técnico americano para preparar uma ampla reforma educacional, que, de fato, acabou por ser realizada, com base principalmente em duas leis, a 5.540/68, que promoveu uma ampla mudança estrutural no ensino universitário, e a 5.692/71, que fundiu os cursos primário e ginasial em um único ciclo inicial, o primeiro grau.

Já o antigo curso científico foi fundido com o clássico e passou a ser denominado segundo grau. Era preciso, nas palavras de Jarbas Passarinho, então ministro da Educação entre 1969 e 1974, “abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir, vigorosamente, para um sistema educativo de 1º e 2º grau voltado às necessidades do desenvolvimento”.

“Cabe destacar também que a influência da USAID não atingiu apenas educação formal brasileira, para modernizá-la, mas, em conjunto com outras instituições americanas, a agência aprovou empréstimos e doações, que se estenderam desde as doações contra a fome e a seca, como foi o caso das doações para a SUDENE, até aos empréstimos para cooperações técnicas na saúde e saneamento básico”, afirma a doutora em filosofia e história da educação e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Francis Mary Guimarães Nogueira.

Influência geral

Como descreve a pedagoga Otaíza de Oliveira Romanelli no livro “História da educação no Brasil (1930/1973)”, a parceria tinha como objetivos declarados “melhorar a eficácia e a produtividade do sistema escolar; melhorar conteúdos, métodos e técnicas de ensino; modernizar os meios de comunicação de massas, com vistas à melhoria da ‘informação nos domínios da educação extraescolar’; e reforçar o ensino superior, ‘com vista ao desenvolvimento nacional’”.

As propostas se concretizaram na forma de uma série de acordos, que se estenderam até os anos 1970. Mas os principais, e mais determinantes para as mudanças pelas quais a educação no Brasil passou, são 12, firmados entre 1964 e 1968. “Todos esses acordos, embora impliquem assistência a setores específicos, possuem uma estrutura única, perceptível através de aspectos comuns”, escreve a autora.

Os documentos assinados de junho de 1964 a janeiro de 1968 previam a contratação de assessores americanos por dois anos para “aperfeiçoar o ensino primário”, treinamento de técnicos brasileiros nos Estados Unidos, reformulação das faculdades de Filosofia, e a inserção de 51 milhões de livros selecionados pela USAID nas escolas ao longo de três anos, entre outras medidas.

Latim e filosofia foram eliminados do currículo escolar

Na sequência, os livros com o carimbo MEC-USAID se disseminaram nas bibliotecas das instituições de ensino brasileiras, enquanto o ensino era alterado em alinhamento às orientações americanas, com foco na educação profissionalizante. Como resultado, disciplinas como latim e filosofia foram eliminadas, enquanto conteúdos técnicos eram reforçados.

Dois consultores americanos se mostraram especialmente influentes neste período. Um deles foi John Hilliard, diretor do escritório de educação e recursos humanos da agência entre 1966 e 1973, com passagem anterior pela Fundação Ford. Dele partiam orientações gerais sobre como a USAID deveria influenciar a educação no mundo. “A agência tem por função não a concepção de uma estratégia da educação, mas influenciar e facilitar esta estratégia nos setores nos quais seus conhecimentos, sua experiência e seus recursos financeiros podem ser uma força construtiva que ajudará a atingir os objetivos visados”, defendia.

Quem conduziu estas ações no Brasil, especificamente, foi Rudolph Atcon. “Nasceu na Grécia e naturalizou-se norte-americano. A partir de 1951 desenvolveu diversos trabalhos no Brasil. Neste contexto destaca-se sua atuação no campo do ensino superior que iniciou-se nos primeiros anos da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)”, relata Gabriella Inhan de Souza, em tese de mestrado produzida para a Universidade Federal de Juiz de Fora.

Em 1966, ele incentivou a criação do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), onde atuou como secretário. A partir desta posição, escreveu um “Manual sobre o planejamento integral do campus universitário”, publicado em 1970. “Este livro teve ampla divulgação nas universidades brasileiras justamente no período de ampliação física das mesmas”, afirma a pesquisadora.

Foi a partir deste momento que se definiu que reitores e vice-reitores das universidades públicas seriam escolhidos pelo governo, a partir de uma lista de nomes indicada pelo Conselho Universitário. Também perdeu espaço a figura das cátedras e ganhou espaço a organização dos professores em torno de departamentos. “Rudolf Atcon foi um ator importante para a reforma universitária no país. Suas publicações e suas consultorias tiveram forte impacto na estruturação administrativa, pedagógica e física de diversas universidade no Brasil”, escreve Souza.

“Com a extinção das cátedras, os departamentos são criados como a menor célula administrativa”, explica Nogueira, que lista outras mudanças que aconteceram em paralelo: “A institucionalização da pesquisa se amplia com a implementação dos cursos de pós-graduação Stricto Sensu; acontece a desvinculação constitucional dos impostos para o financiamento de todos os níveis educacionais; é efetivado o desmembramento dos cursos de licenciatura, de quatro para dois anos, e de três anos para um ano e meio. As chamadas licenciaturas curtas permitiram a expansão desenfreada das faculdades privadas, que organizavam seus currículos para serem ofertados no final de semana. E o vestibular passa a ser classificatório, ao invés de eliminatório”. De fato, até a reforma, os vestibulares selecionavam todos os candidatos que obtivessem uma nota mínima, o que gerava um problema: muitas vezes não havia vagas para atender a todos os aprovados.

Proposta fracassada

A USAID foi criada em 1961 pelo governo de John F. Kennedy, com o objetivo de unificar os muitos programas americanos de assistência ao redor do mundo. Só em 2024, respondeu por 42% de toda a ajuda humanitária mobilizada no planeta, ao menos aquela que é monitorada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Atua para, em tese, apoiar países menos favorecidos, especialmente em crise. Na prática, funciona como um instrumento do chamado soft power americano – foi o que se viu no Brasil de 60 anos atrás.

Mas a reforma prevista pelos acordos MEC-USAID não foi bem sucedida, em parte, porque o ensino técnico demanda investimentos que não foram realizados a contento. Há relatos da época de casos em que alunos aprendiam a datilografar sobre cartões de papelão, na falta de máquinas de escrever para todos, ou de instituições que deveriam ensinar Química na prática, mas sequer tinham laboratórios. “A modernização desejada pela USAID não foi exatamente aquela promovida pelo governo, embora este tivesse adotado a maior parte de sua estratégia e até assumido a responsabilidade das inovações propostas”, resume Otaíza de Oliveira Romanelli em seu livro.

Por outro lado, no ensino superior, começaram a se espalhar pelo país os campi universitário de grande porte, como previstos por Atcon, ao passo em que as faculdades privadas começavam a contar com incentivos maiores para atuar. De acordo com o Censo da Educação Superior produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2023, 79,3% dos 9,9 milhões de estudantes matriculados no ensino superior estavam em instituições privadas.

Ao longo da segunda metade do século passado, houve avanços na disponibilidade do ensino. Em 1970, 33,6% dos brasileiros com mais de 50 anos eram analfabetos. Em 1950, eram 50,5%. Em 2022, 7%. Com a reforma educacional realizada durante o regime militar, o ensino de primeiro grau para crianças de sete a 14 anos passou a ser obrigatório, o que contribuiu par ampliar o alcance da rede de atendimento em educação. Mas as notas do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), organizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indicam que a educação segue abaixo do padrão internacional, incluindo em disciplinas que, em tese, teriam sido beneficiadas pelo foco em ensino técnico.

O Brasil está entre os 20 piores países em matemática e ciências, e entre os 30 piores em leitura. No ranking que avalia o pensamento criativo, não passou do 44º lugar, entre 56 nações avaliadas. Na avaliação de Ilona Becskehazy, ex-secretária de Educação Básica do MEC, durante o governo Bolsonaro, a influência estrangeira não ajudou, mas não foi decisiva para que chegássemos a este cenário.

“Nossa educação é ruim por um conjunto de razões. A influência de fora nas políticas educacionais hoje é irrelevante. O que aconteceu, tanto no caso da USAID quando com parcerias mais recentes com a Unesco, é o governo desperdiçando dinheiro para ONGs viajarem mundo afora e pagarem salários fora da realidade do mercado, sem benefícios concretos para a educação brasileira”.

noticia por : Gazeta do Povo

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